Neste dia 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra. Trata-se de uma celebração que rememora a morte de Zumbi dos Palmares, líder de um quilombo que lutou estoicamente contra as tropas pernambucanas até ser esmagado com violência no final do século 18. Em todo o país, seminários e mesas redondas são realizadas em escolas, com o propósito de educar para a tolerância e a igualdade. Não raramente, os alunos são apresentados a elementos da cultura afro-brasileira, como a culinária, expressões idiomáticas, e a religião sempre e exclusivamente de raiz africana, como o Candomblé e a Umbanda.
É aqui que temos uma situação que, além de criar um paradoxo do ponto de vista do Estado Democrático, comete também uma injustiça com muitos dos próprios negros. O Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador gaúcho Paulo Paim, conferiu um status diferenciado às chamadas religiões de matriz africana, o que lhes franqueia um acesso privilegiado a espaços públicos, como escolas, universidades e órgãos vinculados ao tema da igualdade racial. Na prática, com o propósito de combater o preconceito, o Estatuto da Igualdade Racial cria um novo padrão de preconceito religioso, transformando o Candomblé e a Umbanda em religiões com proteção especial, o que fere o caráter laico do Estado Brasileiro – que ultimamente só é evocada para retirar crucifixos de tribunais e o nome de Deus das cédulas de Real.
Evidentemente que a religião é um traço indissociável da cultura, e que a religião afro-brasileira é um dos elementos constitutivos da cultura trazida pelos africanos. No entanto, evocá-la como única religiosidade “negra” é desconhecer a pluralidade e criatividade religiosa da negritude brasileira, que tem contribuições em todas as confissões, inclusive na fé cristã. Nunca é demais lembrar que o próprio Zumbi dos Palmares, teve acesso à educação formal através de um padre católico e era um devoto praticante, e na história do catolicismo as irmandades religiosas de negros se contam às centenas. No protestantismo, a fé pentecostal é, como diz o título de uma obra do pastor e ativista Marcos Davi de Oliveira, a religião mais “negra” do Brasil, com mais de 8 milhões de negros que se declaram pentecostais. O vocabulário, a expressão social, praticamente tudo no pentecostalismo está carregado com tonalidades negras, ainda que boa parte do próprio segmento desconheça isso. Nem poderia ser diferente, para uma vertente do cristianismo que deve seu surgimento a um afro-americano chamado Willian Seymour, filho de ex-escravos que se tornou o pai do Avivamento da Rua Azusa, de onde emanaram igrejas como Assembleia de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, Congregação Cristã e outras.
A Bíblia Sagrada nos apresenta o profeta Amós revelando um Deus amoroso com todos os povos: “Não sois vós para mim, filhos de Israel, como os filhos dos etíopes?” (Amós 9:7), e a negritude de um dos profetas, Sofonias, “filho de Kush (Sf 1;1)”, o antigo império etíope de onde descendeu a Rainha de Sabá, de cuja união com o Rei Salomão se originaram os judeus falashas, negros etíopes com sangue e fé judaica. Era falasha o oficial que Felipe evangelizou, fazendo com que o Evangelho ultrapassasse as barreiras da Terra Santa. Portanto, a fé cristã deve muito do que hoje é aos negros e sua cultura, que fazem parte de sua história. Isso sem falar em irmãos de fé como Rosa Parks, Martin Luther King, Desmond Tutu e uma miríade de pastores negros, sem fama ou renome, que evangelizam em favelas, presídios e cidades de todo o país.
Não se desconhece, entretanto, algumas abordagens infelizes da fé cristã em relação ao negro, como a lamentável teologia da “Maldição de Cam”, evocada pelo inquisidor católico Juan Batista de las Casas em 1826 e que em 2011 voltou a ser destaque na declaração infeliz de um conhecido parlamentar assembleiano. Na época, encaminhei um documento pessoal à Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Manuela D’Ávila, destacando que Cristo nos resgatou de toda maldição (Gl 3.13) e da lei do pecado da morte (Rm 8.2), revogando em si mesmo todas as imprecações do Antigo Testamento
Sendo um quase-branco trisneto de imigrantes libaneses, talvez até alguém pudesse questionar minha legitimidade para este assunto. No entanto, creio firmemente que a igualdade racial é um debate que deve ser, sim, enfrentado no Brasil. Mas de uma forma que não reduza o negro à um certo racialismo mainstream altamente influente nos dias atuais. Mas que, pelo contrário, o negro possa se expressar dentro de sua pluralidade, sem uma tradição religiosa se impondo sobre as demais. Cláudio Moreira
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